Eu sofro.
Essa é a primeira pessoa do singular de um verbo que venho conjugando há um bom tempo.
Eu, no caso, sou eu. José, mais conhecido como Zé da pedra. Muito prazer!
Não vou dizer o meu nome verdadeiro, por isso sou apenas o Zé. Zé da pedra. Aos poucos você começa a me identificar, não é mesmo? Estou por aí, em várias esquinas e mocós. Algumas vezes, com certeza, você já cruzou comigo.
Pois nem sempre eu foi o Zé da pedra. Até há alguns anos – são poucos, mas parece que já se passou uma eternidade – eu era o José, filho da dona Eduarda e do seu Pedro. Estudava em colégio público ou particular, não importa, mas era um bom colégio e eu tinha vários amigos. Hoje a minha residência ou o meu mocó (que é onde eu vivo) fica numa dessas cracolândias que existem por aí, em quase todas as cidades, em quase todos os cantos. E minha sala de aula é a rua.
Um dia, eu me tornei o Zé da Pedra. De verdade, nem eu mesmo lembro direito como foi. Eu queria apenas experimentar aquele negócio que um amigo me oferecia quase todos os dias na saída da escola. Tinha curiosidade. E foi a curiosidade que me transformou em Zé da pedra.
Acredite. Foi amor à primeira vista. Quando eu engoli aquela fumaça branca, pode-se dizer que foi abduzido por aquilo. Tinha um sabor inigualável na primeira vez. Hoje, a ausência dela me traz dor, muita dor. Essa dor que me leva a fazer coisas que nem sempre quero fazer. Mas ela me obriga. Chamar isso de amor é redundante, mas sei que se sente tanta dependência por alguém quando se ama, como se tem dependência pela droga, quando se aceita ela.
Foi uma aceitação. Foi uma iniciação. Foi o que você quiser pensar que seja. Não senti dor como sinto agora. E é aí que reside o problema. A curiosidade te leva a ela e depois essa dependência terrível não a deixa ir embora.
- Sou o Zé da pedra.
Mas nem sempre fui esse Zé. Fui outro. Vivia com meus pais, tinha minha namorada e um grupo de amigos. Saíamos de vez em quando para comer uma pizza e jogar conversa fora. Lembro com saudade daqueles tempos porque dizer que todos me abandonaram também não é verdade. Eu provoquei esse abandono. Ninguém queria conviver com alguém que aos poucos nem sabia o que estava fazendo.
Eu não tomava mais banho. Eu não me preocupava com a aparência. Eu não escovava os dentes nem fazia a barba. Imagina conviver com alguém assim. E por um tempo, nem queria sair do quarto. Ficava lá, me embalando com ela, a droga. Viajava, imaginava uma vida que já tinha perdido. E todos foram se afastando. Só uma pessoa permaneceu ao meu lado, e permanece até hoje, mesmo eu tendo saído de casa e estar aqui, jogado numa sarjeta, morando na rua e correndo todos os riscos possíveis. Minha mãe nunca desistiu de mim. Mas eu, quando estou com ela, desisti dela e todos os outros. Quando estou bem, choro, sinto falta do abraço da minha mãe. Sinto falta do abraço da Vânia, mas Vânia até já casou com outro. Desistiu de mim. Como eu tinha desistido dela. Tarde demais prá se arrepender.
- Eu sofro. E muito.
Conjugo esse verbo sofrer todos os dias em alguns períodos de consciência. Mas depois levanto, vou até o semáforo mais perto e peço dinheiro. Um pouquinho só, por favor. Junto o suficiente para comprar uma pedra e me afasto do mundo, de novo. Mas às vezes a dor é tanta, meu corpo pede por ela de uma forma lancinante, que eu acabo fazendo coisas que não devia fazer só para conseguir comprar ela.
Não dá para contar mais nos dedos das duas mãos as vezes que fui agredido, por companheiros de infortúnio, por cidadãos comuns ou pela polícia. Quando a dor aparece, peço prá morrer, mas sou covarde, não vou fazer nada contra o meu corpo. Mas peço prá morrer e já tomei algumas atitudes das quais nunca pensei que seria capaz de fazer.
Lembro um dia que, sofrendo de dor pela ausência da droga, interpelei um homem numa rua, na madrugada fria dessa cidade. Pedi dinheiro ele se recusou a me dar. Disse que trabalhava e não tinha qualquer responsabilidade em sustentar o vício de um drogado filho da puta como eu.
Filho da puta não! Filho da puta não! Posso ser um drogado, posso ser um marginal quando quero, posso ser gentil ou agressivo. Mas filho da puta, não. Minha mãe não merece esse nome pejorativo, apesar de eu pessoalmente não ter nada contra as putas. Muitas delas já me deram guarida.
Mas filho da puta, não! Fiquei agressivo e tentei meter a mão no bolso do cidadão em busca de dinheiro. Levei um safanão e caí no chão. Estava frágil como estou até agora. Bati com a cara na calçada e meu nariz começou a sangrar. Não me alimento direito.
E o cidadão puxou um revólver da cintura. Devia ser um policial. Olhou-me diretamente nos olhos e eu vi a morte. Desejei-a. Queria que aquela dor acabasse. Implorei para que ele puxasse o gatilho. Fechei os olhos e me vi descansando. Fechei os olhos e imaginei o estampido. Não sentiria mais dor pelo impacto da bala do que já estava sentindo. Seria um alívio.
Mas não acontecia nada. Não foi daquela vez, ainda. Abri os olhos e olhei de novo os olhos daquele homem. Ele não tinha mais a arma na mão e a estendia para mim. Ficou compadecido o filho da puta (agora sim!!!) e não quis ter a minha morte na consciência, pensei. Mas não falei, claro.
Agradeci a mão e levantei trambaleante. Queria ir embora, voltar para o meu mocó.
Mas ele me agarrou pela roupa, me jogou dentro de um carro e quando acordei estava em uma clínica de recuperação de viciados. Ganhei uma nova oportunidade, mas não se engane, não era a primeira vez que eu entrava numa casa daquelas. Ficava limpo por uns tempos, mas a minha paixão me chamava e eu voltava para os braços dela. Sofrendo. Mas voltava. Sempre voltei. Acho que ela sabia que eu voltaria.
- Outra chance
Você pode pensar que eu estou satisfeito com essa vida, afinal, foi a que eu escolhi. Não é verdade. Eu queria uma segunda chance. A chance de recusar a primeira, aquela eu que eu resolvi, por curiosidade, conhecer mais de perto essa coisa.
Entrar foi fácil. Sair está sendo impossível. Mesmo não querendo, a dor me obriga a voltar. Quem fuma um cigarro comum sabe o que é a abstinência da nicotina. É dolorida. Pois a abstinência da droga é muito mais dolorida. Inimaginável!
Por isso eu sofro. Eu sei que ela me espera numa das esquinas da cidade. Pode acreditar, ela nos espera onde você menos espera. Às vezes ela vem te procurar dentro da tua própria casa, conduzida por um pseudo amigo. Ela é implacável. Depois da primeira vez, difícil não ter a segunda. Quase impossível ter a última. Eu disse quase.
Eu continuo nessa porque sou covarde. Já disse isso, né?
Nessa caminhada, já encontrei quem teve mais coragem do que eu. Alguns vieram conversar comigo. Traziam consigo palavras de um ser que você não vê e só acredita mesmo se quiser. Não adiantou, ainda. Eu disse, ainda! Espero um dia ter coragem suficiente para encarar ela de frente, dizer não, não te quero mais aqui. Mas ainda não chegou a hora. Covarde!
Às vezes ouço a voz da minha mãe:
– Zé, vem comigo. Preciso de você!
Ela sabe que na verdade se alguém aqui precisa de alguém, esse alguém sou eu. Não desista de mim, mãe. Não desista!
Ainda conjugo o verbo eu sofro. Estou no presente do indicativo. Um dia quero conjugá-lo no passado: eu sofria!
Por enquanto, convivo com muita dor. Não há mais prazer. Só dor.
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Na próxima reportagem da série, tu (ela) sofre. A história da mãe do Zé, aquela que nunca
desistiu dele, contada por ela mesma.
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João Alceu Julio Ribeiro