A função dos preços em calamidades públicas: flexibilidade como solução ao desabastecimento
Os preços desempenham um papel fundamental na sinalização de informações econômicas essenciais, sendo reconhecidos como o melhor mecanismo de sinalização disponível nos mercados. Em mercados competitivos, a função dos preços vai além de simplesmente equilibrar a oferta e a demanda. Eles também garantem a maior eficiência possível. Nesse contexto, os agentes que conseguem produzir a um custo mais baixo são os que vendem, enquanto aqueles que mais valorizam ou necessitam do produto são os que compram.
Contudo, o mundo é mais complexo do que prevê a teoria econômica dos mercados competitivos. Existem, por exemplo, situações de calamidade causada por enchentes, como a que o estado do Rio Grande do Sul está enfrentando, que acabam por gerar algum tipo de desabastecimento. Nesses cenários, ocorre um efeito de gatilho por parte dos consumidores, que passam a estocar alimentos, combustíveis, materiais de higiene, entre outros produtos, mesmo em locais não diretamente atingidos pelo desastre.
Esse eventual problema de abastecimento pontual em locais não atingidos pela enchente causado pelas dificuldades que devem ocorrer por poucos dias de transportar produtos, pode se transformar em um problema gigantesco de desabastecimento geral. Note que singularidade dessa situação é que o desabastecimento ocorreria mesmo que não houvesse problemas para repor a oferta. Se trata de um choque de demanda que não poderia ser atendido no curto prazo, pois a oferta é, como os economistas classificam, inelástica. Em outras palavras, se todo mundo resolver comprar em um dia o que irá consumir ao longo de um mês, não haverá sistema de abastecimento capaz de atender essa demanda.
O que fazer? Podemos apelar para o bom senso dos consumidores, mas, em situações de pânico, isso não costuma funcionar. Uma outra estratégia seria limitar o consumo, por exemplo, estabelecendo quantidades máximas para determinados produtos mais necessários. Isso permitiria o acesso a um maior número de pessoas a esses produtos. No entanto, essa estratégia não resolve completamente o problema, pois nada impede que uma pessoa realize múltiplas compras e compre uma quantidade exagerada. Nesse cenário, quem tem mais tempo e disposição seria favorecido.
Para resolver esse problema, não há outro meio mais eficiente do que ajuste de preços. Os preços devem subir para se ajustar ao choque de demanda. Desta forma, somente quem realmente precisa comprará, e o fará na medida exata de sua necessidade. Aqueles que não precisam ou que não têm condições de pagar, esperarão. Os preços mais altos também estimulam a expansão da oferta, pois, por exemplo, passa a compensar transportar os produtos de um local para outro, superando os custos adicionais que surgem por causa da nova realidade e, assim, são capazes de suprir eventuais demandas adicionais.
Subir os preços durante um choque de demanda causado por uma calamidade pública pode parecer insensível, mas essa abordagem ajuda a garantir que os recursos sejam direcionados para aqueles que realmente necessitam, enquanto também incentiva a mobilização de mais oferta para atender à demanda adicional. Essa estratégia não apenas aloca os recursos de maneira mais eficiente, mas também ajuda a restaurar o equilíbrio nos mercados afetados.
No início da pandemia de COVID-19, um dos primeiros itens a desaparecer das prateleiras das lojas foi o álcool em gel, um produto crucial na luta contra a disseminação do vírus. De acordo com relatos da época, a demanda pelo álcool em gel disparou e, com ela, os preços aumentaram significativamente, levando a uma escassez tanto do produto final quanto da matéria-prima necessária para sua produção.
No entanto, a resposta da indústria a esta crise foi rápida e eficaz. Empresas de cosméticos renomadas, como Boticário, Natura e L’Óreal, e até empresas de outros setores como a Ambev redirecionaram suas linhas de produção para fabricar álcool em gel, e novos fornecedores de ingredientes essenciais foram rapidamente mobilizados para atender ao aumento repentino na demanda.
A flexibilização das regulações pela Anvisa, que acelerou a emissão de licenças necessárias para a produção e comercialização de álcool em gel, foi um fator crucial para que as empresas pudessem adaptar-se com rapidez. Essa agilidade regulatória, combinada com a manutenção de preços livres e sem intervenção direta dos órgãos de defesa do consumidor em um primeiro momento, permitiu não apenas a normalização, mas também um excedente na oferta de álcool em gel nas prateleiras em um curto período.
Passado o período inicial de ajuste, não só a disponibilidade do produto foi restaurada, como também houve um excesso significativo de estoque. A rápida resposta do setor e a cooperação entre as partes interessadas mostraram como a flexibilidade e a liberdade de mercado podem ser eficazes em tempos de crise, garantindo que produtos essenciais permaneçam acessíveis e disponíveis para todos.
Portanto, em resumo, a adoção de preços flexíveis em situações de calamidade públicas é uma resposta pragmática que aborda os desafios complexos dessas circunstâncias. Ao permitir que os preços reflitam a escassez e o valor dos recursos, é possível mitigar os impactos da calamidade e promover uma recuperação mais rápida e eficiente.
Cristiano Oliveira é professor Associado na Universidade Federal do Rio Grande e head of research na Rivool Finance