No mundo físico, é fácil saber quando um conflito violento foi iniciado. Em suas devidas proporções, nos tempos de ensino ginasial, entendíamos que aquele bate-boca e empurra-empurra entre dois alunos resultaria em uma briga ferrenha; lá em 1914, Gavrilo Princi certamente sabia que, ao assassinar o arquiduque Francisco Fernando, estaria acendendo o pavio de uma guerra que poderia afetar o mundo inteiro.
No mundo virtual, porém, as coisas costumam ser mais nebulosas. Algumas pessoas defendem que não perceberemos quando a Primeira Ciberguerra Mundial for iniciada — outras dizem que ela já começou faz tempo e segue ocorrendo neste exato momento, enquanto você usa seu computador para ler este texto. Se seguirmos essa sensata segunda linha de pensamento, podemos dizer que esse conflito digital teve suas origens em 2010.
Foi em junho daquele ano que a empresa de segurança VBA32 descobriu a existência do Stuxnet, um malware complexo que infectou e danificou as usinas de enriquecimento de urânio do Irã. Foi a primeira vez que um vírus de computador ultrapassou a barreira entre o físico e o digital, criando não apenas prejuízos financeiros incalculáveis, mas também um risco de tragédias reais que poderiam afetar milhões de vidas inocentes.
Soldados digitais
Seis anos após sua descoberta, ninguém sabe quem foi o criador do Stuxnet. Porém, a teoria mais aceita é a de que o malware seria, na verdade, uma arma cibernética criada pelos Estados Unidos em parceria com Israel, com o intuito de prejudicar o programa nuclear iraniano. Visto que quase 9 mil máquinas do país também foram afetados pelo vírus, a Rússia acabou sendo descartada como possível culpada por trás do ataque.
De lá para cá, o número de ataques cibernéticos sofridos por grandes potências globais tem aumentado de forma vertiginosa. O melhor exemplo que podemos citar é o misterioso ataque de negação de serviço organizado no dia 21 de outubro e direcionado à Dyn, uma das maiores operadoras de DNS dos EUA. O feito congelou a operação de uma série de websites e serviços importantes do país, incluindo Twitter, Amazon, PayPal, Spotify e Netflix.
Isso só foi possível graças ao uso de uma ferramenta chamada Mirai, que vasculha a web em busca de dispositivos de Internet das Coisas (IoT) vulneráveis e os transforma em uma rede de bots a seu comando. Com essa arma em mãos, os hackers puderam enviar um tráfego absurdo oriundo de um número incalculável de pequenos gadgets dotados de endereço IP, quebrando o servidor da Dyn.
A nova Guerra Fria?
Não demorou muito para que internautas começassem a enxergar o ataque como uma operação conjunta de hackers patrocinados pela Rússia. Afinal, dias antes, oficiais estadunidenses culparam o país em público pelo vazamento de quase 20 mil emails trocados entre membros do Comitê Nacional Democrata, responsável pela coordenação do Partido Democrata dos Estados Unidos. O vazamento foi divulgado através da plataforma WikiLeaks.
Para o Departamento de Segurança do país, apenas oficiais russos de alto escalão poderiam ter colaborado com o roubo de informações — que, na teoria, foi de suma importância para definir os rumos das eleições presidenciais de 2016. Afinal, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, já demonstrou ter maior afinidade com o republicano Trump, vencedor das eleições, do que Hillary Clinton, do Partido Democrata.
O ataque aos servidores da Dyn ocorreu pouco tempo depois que os EUA ameaçaram retaliar a Rússia à altura dentro do campo cibernético. Na época, um porta-voz de Putin demonstrou descontentamento com os ânimos dos americanos. Todos os dias o site de Putin é atacado por dezenas de hackers. Vários dos ataques são rastreados como tendo origem nos EUA, mas nós não culpamos a Casa Branca por isso, afirmou.
TAO: os hackers de elite dos EUA
Quase todas as grandes potências globais já possuem, dentro de seu setor de segurança nacional, algum tipo de força de elite formada por hackers contratados para defender os interesses de seu país caso realmente venhamos a presenciar uma ciberguerra mundial. Os Estados Unidos, por exemplo, possuem o Office of Tailored Access Operations (TAO), que pode ser traduzido como Escritório de Operações de Acessos Adaptados.
Por trás desse nome inofensivo, se esconde um grupo de profissionais altamente capacitados que, a serviço da Agência Nacional de Segurança (NSA), são capazes de identificar, monitorar e se infiltrar em sistemas computadorizados de fora dos Estados Unidos. De acordo com uma reportagem publicada em 2013 pelo site Foreign Policy, a unidade existe desde o final da década de 90 e é formada por mais de milhares hackers, analistas de inteligência e engenheiros de software e de hardware.
Em uma entrevista concedida à VICELAND, Jorg Schindler, repórter do site alemão Der Spiegel, afirmou que não é possível saber o real tamanho e verdadeiras intenções do TAO — porém, sabe-se que o grupo desenvolve e utiliza ferramentas que visam invadir todo e qualquer dispositivo eletrônico, com o intuito de ficar de olho em nações rivais e interceptar comunicações que sejam importantes.
Outros países
Embora não hajam informações públicas sobre uma eventual agência de ciberguerra russa, todos sabem que o país, de fato, possui profissionais competentes ao seu dispor quando o assunto são os conflitos digitais. De acordo com o jornalista investigativo Andrei Soldatov, a maioria das atividades militares cibernéticas da nação são coordenadas pelo Serviço de Segurança Federal (ou FSB, no original em inglês).
Já a Coreia do Norte possui a Bureau 121, uma agência formada por quase 2 mil hackers de elite selecionados a dedo pelas forças militares coreanas. A unidade começou a receber as luzes dos holofotes em 2014, quando seus membros supostamente invadiram os servidores da Sony Pictures, forçando a companhia a cancelar a estreia do filme A Entrevista (que satirizava Kim Jong-un, supremo líder da República Popular da China).
E, por falar nos chineses, vale observar que eles também contam com um exército cibernético próprio, que costuma ser referenciado como pelo código Unidade PLA 61398. Especializado em espionagem industrial e manobras ofensivas contra redes estrangeiras, o grupo só teve sua existência confirmada pelo governo local em março de 2015, embora os EUA os culpem de invadir sistemas norte-americanos desde o começo de 2014.
O Brasil se prepara
Por mais que muitos não saibam, o Brasil também possui uma infraestrutura militar para nos defender caso o país acabe se envolvendo em uma guerra virtual de proporções mundiais. Trata-se do Centro de Defesa Cibernética (CDCiber), unidade que responde diretamente ao Ministério da Defesa. Inaugurada em 2012, a unidade tem como objetivo planejar, orientar e controlar as atividades operacionais, doutrinárias e de desenvolvimento das capacidades cibernéticas da nação.
Tendo atuado na análise e neutralização de ameaças durante vários eventos importantes sediados no Brasil — incluindo o Rio +20 e a Copa do Mundo de 2014 —, o CDCiber se desdobra em diversos setores especializados, como o Centro Integrado de Telemática do Exército (CITEx) e o Comando de Comunicações e Guerra Eletrônica do Exército (CCOMGEX). Cada um desenvolve e trabalha em seus próprios projetos.
É óbvio que, até o momento, o Brasil não sofre tanto com conflitos cibernéticos globais quanto os outros países citados anteriormente — porém, é natural que estejamos nos preparando para o pior. A simples existência do CDCiber fez com que o governo federal separasse uma verba para o setor de segurança cibernética, e, visto que estamos atrasados em relação aos EUA, por exemplo, é bom ver que tal área começa a receber a devida atenção.
Contagem regressiva
A conclusão é simples: todo mundo está se armando para um conflito que deve tomar proporções perigosas em um futuro breve. Guerras cibernéticas podem desbalancear uma nação em pouco tempo, afetando suas comunicações e causando prejuízos financeiros tanto para órgãos públicos quanto para empresas privadas. O ataque de negação de serviço à Dyn foi a maior prova disso.
A ciberguerra — felizmente — também não envolve o uso de exércitos armados ou bombas nucleares, mas, acredite, na pior das hipóteses, você também vai sofrer com as consequências dela nos próximos anos.
Por: TecMundo