(terceiro texto da série de quatro)
Nós sofremos!
Nós somos um grupo de apoio do qual o Zé da Pedra já foi um dos frequentadores.
Ele vai e vem. É como sanfona, abre e fecha.
Não consideramos, aqui dentro do grupo, que só os covardes se entregam às drogas. Não é verdade. Quem se entregou às drogas foi alguém que em um determinado momento da vida foi fraco o suficiente, ou curioso o suficiente, para experimentar algo que lhe proporcionaria alegria, satisfação, prazer, poder.
Podemos até pensar que isso é verdade num primeiro momento. Mas o que a droga proporciona prá gente na verdade é dor, muita dor. A partir do momento em que ela entra no teu sangue, meu amigo, se prepare. Ela vem com tudo. Te pega de jeito, te obriga a ir em busca dela de novo.
- Nós sofremos.
Esse grupo de apoio como qualquer outro grupo, em qualquer cidade ou em qualquer parte do mundo, tem gente que quer sair desse sofrimento. Esse é o primeiro passo para isso. Talvez o mais importante, porque quem está aqui demonstra que está com vontade de sair. Mas, meu amigo, vou te dizer. Não é fácil, por isso, que você não tem capacidade e coragem para sair, não tenha essa mesma capacidade ou curiosidade para entrar.
Nosso grupo está sempre aberto para mais um mas, sinceramente? eu não quero você aqui!
Pense muito antes de se precipitar nesse precipício. Jogo de palavras? Até pode ser mas a verdade é bem essa. Isso é um precipício, um buraco enorme, do qual só se sai com muito esforço. Sangramos, até, para conseguir chegar à borda. Mas uma vez lá, não terminamos nosso trabalho de recuperação.
Todo dia é mais um dia. Todo dia temos que lutar contra a vontade de voltar para o buraco. Somos alcoólatras, dependentes químicos. Como eles, um dia é mais um dia. Só mais hoje limpo.
O hoje tem vinte e quatro horas, cada hora tem sessenta minutos e cada minuto tem sessenta segundos. Você nem sequer imagina o que isso significa, nunca deve ter parado para pensar. Mas prá nós, cinco minutos pode ser uma eternidade. “Só mais cinco minutos longe dela” é o que todos pensamos.
Roberto, o Beto, vem sempre aqui. Ele já foi um “Zé da pedra” e hoje aprendeu a contar os segundos, os minutos e as horas. Está limpo há dois anos, mas ainda sente falta e dor. Imagina só que vício desgraçado!
Há milhares de nós por aí, se reunindo em igrejas, barracões, construções, em qualquer lugar.
- Eu também sofro.
Eu também vivi os tempos de um “Zé da Pedra”. Hoje, quando nos reunimos – esse grupo é formado por 18 pessoas, homens e mulheres – fico olhando no rosto de cada um. Imaginando o sofrimento. Compartilhando a dor.
Renata já foi uma mulher bonita. Hoje está acabada. Você não consegue acreditar que ela tem 35 anos. Parece uma velha. Uma velha de 35 anos, uma filha de 6 que vive com a avó e alguns abortos pelo caminho. Mas ela é corajosa.
Também conjuga o verbo sofrer todos os dias, porém está na luta. Se deu conta a tempo de que pode mudar o seu próprio destino para melhor, como mudou, um dia, para pior.
- Ela chora. Ela sente dor. Ela sofre.
Conjuga conosco esse verbo há algum tempo. E houve tempo em que vi sua cadeira vazia. Algumas vezes em que não resistiu à dor e se entregou. Voltava confiante de que estaria limpa em pouco tempo. Mas a droga não perdoa. Se você não tem coragem, não consegue superá-la.
Já vi casais se encontrando aqui. Se apoiaram e saíram juntos dessa rodinha de 18 cadeiras. Estão lutando a dois contra a dor e contra a vontade. Alguns se separaram como acontece com qualquer casal nessa vida. Outros persistem. Se apóiam.Ombro no ombro. Apenas mais um dia.
Nós sofremos. Mas lutamos!
Há muitos de nós que sofrem, mas não lutam. Não querem lutar. Não se sentem capazes de lutar.
Vi muitos morrerem, na rua, na cadeia. Vi muitos agredirem pessoas por desespero pela droga. Vi muitos sucumbirem pela dor, só pela dor. Vi famílias estraçalhadas. Pais, mães, filhos. Ninguém que se abraça a ela é perdoado. A droga destrói.
E você pode pensar que é corajoso o suficiente para sair desse círculo vicioso a hora que quiser. Mas tente. Apenas tente. Aí você vai ver se realmente é corajoso ou um covarde que tem medo da dor.
O Zé da Pedra já foi e voltou várias vezes. Parece um ser que está se afogando. Afunda e volta à superfície algumas vezes. Ou o desespero o ensina a nadar e ele se salva ou perde as esperanças e afunda. Naufraga. Se entrega!
Nós sofremos. E muitos de nós estamos na fase da superfície. Estamos respirando, olhando em volta. O mar não está tranquilo e podemos afundar a qualquer momento. Contamos as horas, os minutos, os segundos.
Por enquanto está tudo bem. Nosso grupo não afundou. Não afunda.
Apenas um dia depois do outro.
- Nós sofremos. Mas lutamos.
(Na quarta parte da série, a ser publicada em breve) o verbo a conjugar é o rir. Eles riem. Zé da Pedra conta – ou imagina – como vivem os traficantes, aqueles que enriquecem com o sofrimento de quem se entregou ao vício)
- Texto: Por João Alceu Julio Ribeiro
Quer ler o primeiro texto da série? “A droga domina os covardes” – clique aqui
Quer ler o segundo texto da série? “Maria, entre tantas, sinônimo de abnegação” – clique aqui